CONTO "AMOR" DE CLARICE LISPECTOR obra “Laços de Família”(1960)- Análise
INTRODUÇÃO
“Laços de família” foi publicado nos anos de
1960, e evidentemente está imbuído de características que marcaram os meados do
século XX. Talvez, as nuances culturais mais notáveis deste período foram as influências da filosofia existencialista,
cuja reflexão filosófica apoiava-se na busca de um sentido autêntico da vida,
pressupondo-se a precedência da existência, marcada inerentemente pela
liberdade, em relação às formas sociais impostas pela cotidianidade. A procura
desta autenticidade implicava uma renúncia aos arquétipos de conduta
pré-estabelecidos por determinações culturais e político-econômicas da
sociedade e a aceitação incondicional da liberdade, da qual todos os seres
humanos estavam condenados. Todavia, conforme ditava o existencialismo, tomar
as rédeas da existência exigia responsabilidade e um compromisso moral sujeito
a embates profundos com valores definidos socialmente e, consequentemente, a
represálias vindas do status quo.
Dito de outro modo, assumir o sentido da
vida, o da liberdade, não seria tarefa fácil, e, por isso, a verdadeira
existência, livre de dissimulações e artificialismos, deveria provocar
mal-estar, vertigem, náusea etc. Neste contexto, e feitas estas
considerações pertinentes ao conto “Amor” e ao cenário cultural da época, é
possível pensar uma influência da filosofia formulada por Sartre, Simone de
Beauvoir e outros, na obra de Clarice, embora fosse temerário considerar a
autora como adepta do existencialismo. A verdade é que filosofia
existencialista marcou profundamente a geração de intelectuais contemporâneos
de Clarice. A própria autora chegou a declarar as seguintes palavras: “Passei a
vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar. Ao tentar
corrigir um erro, eu cometia outro. Sou uma culpada inocente” (Clarice Lispector).
Neste sentido, alguns aspectos biográficos são importantes. Clarice nasceu na
Ucrânia, em 1920, de origem de família judia, radicalizou-se no Brasil ainda
quando era criança. Em 1943, forma-se na Faculdade Nacional de Direito da
Universidade do Brasil, e casa-se, em 44, com o diplomata Maury Gurgel Valente,
com quem tem dois filhos, Pedro e Paulo. No ano de 1959, separa-se de Maury,
algo impensável para a época. Fato que demonstra que Clarice não aceitava as
imposições sociais por mero conformismo, e estava disposta a enfrentar os
preconceitos de seu tempo. Interpretamos que sua produção literária é bem um
reflexo de sua vida. Autora de uma vasta obra que vai desde romances, contos,
crônicas e até literatura infantil, Clarice é uma das escritoras mais renomadas
e importantes da literatura brasileira.
ANÁLISE DO CONTO
A personagem protagonista, Ana, é uma mulher,
casada, mãe de família, dona de casa.
a) O
conto “Amor” segue o estilo de Clarice Lispector, tendo por características
principais paradoxos, metáforas e epifanias. Trata-se de mostrar de como uma
realidade banal e aparentemente estável podem aflorar situações altamente
perturbadoras e que põe em xeque a normalidade da vida cotidiana, ao
desestruturar toda a aparente estabilidade anterior. A vida da protagonista Ana
poderia ser descrita como igual à realidade de tantas outras mulheres –
provavelmente da classe média alta – de seu tempo. Sua realidade é preenchida
por referenciais de uma típica dona de casa que divide seu tempo em cuidar dos
filhos, do marido, das compras, da cozinha, do fogão, da cortinas, do tanque de
lavar roupa, etc. Clarice compara tal atividade a de um lavrador. “Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras,
mas essas apenas” (p. 19). A metáfora do lavrador sinaliza muito bem a posição
central que ocupa Ana em cultivar ou administrar o tempo que ata os laços de sua família. Neste sentido, assim como o
trabalho do agricultor é o de preparar o terreno, esperar a estação apropriada,
lançar as sementes, aguardar o germinar, regar e colher, assim também é o papel
que a sociedade espera de uma boa dona de casa e que, ao que tudo indica, Ana
cumpre muito bem. De fato, e se nos fosse permitido uma pequena incursão pela
psicanálise, até mesmo a sua libido que poderia ser sublimada em dotes
artísticos, no caso de Ana, é sublimado na arte
dos afazeres doméstico. Assim, toda
uma suposta potencialidade insondável é abafada e canalizada para fins em que o
lar é o centro. Pode se dizer até que a vida da personagem é invertida, como
numa metonímia, quando a parte de ser
uma dona de casa toma lugar do todo, isto é, do seu ser (seu passado, presente e futuro). Porém, assim como na agricultura
há estações do ano em que um frio rigoroso ou uma chuva de granizo podem pôr a
plantação a perder, Ana também tem suas horas perigosas. Estas horas ou
momentos – o período da tarde – são justamente quando os filhos estão na
escola, o marido, no trabalho, e a casa, limpa. Neste sentido, se em sua vida
não houvesse espaço para ser preenchido com algum cuidado da casa, perderia
todo o sentido. E isso ocorria nestas horas da tarde, em que ela busca
completar com atividades que denotam significados sempre referentes à família.
Logo, a rotina de Ana resume-se a um ciclo determinado por funções relacionadas
ao zelo do lar, da família.
Numa bela tarde, esta realidade é
posta em cheque quando Ana volta das compras e toma um bonde para chegar à sua
casa. No bonde, a figura de um homem cego mascando chicletes abala todo o
equilíbrio tênue de seu mundo, estritamente organizado, e deflagra uma situação
perturbadora, que provoca um terrível horror e um irremediável mal-estar diante
da suspensão de seus referenciais. De repente, o mundo exterior se torna
ameaçador e estranho, hostil. Situação que vai crescendo como uma bola de neve,
e é tão constrangedora que o saco de tricô, onde estavam colocadas as compras,
caem do colo de Ana com a arrancada do bonde, quebrando os ovos. Esta metáfora,
dos ovos, é extremamente importante no conto, pois é um momento que simboliza
uma ruptura, uma quebra da normalidade do pequeno mundo de Ana. O ovo é a sua
vida: um mundo fechado, em si mesmado, mole por dentro e envolto por uma casca
dura, mas frágil, quebradiça; e aquilo que poderia ter nascido fora abortado.
Ao se partir a casca, como uma caixa de Pandora, o mundo real se mostra
extremamente complexo, onde seres mais estranhos surgem inesperadamente,
levando Ana a uma crise existencial. Esta metáfora será retomada quando Ana se
depara diante de “ostras”, prato que ela apreciava. Ana sente um fascínio pela
ostra ao mesmo tempo em que tem nojo. Pode-se inferir daí que o mundo imerso em
que a protagonista está submersa lhe causa repugnância porque foi recalcado
violentamente e nada mais é que o mundo exterior. Paradoxo! Este mundo é seu
próprio espelho: a assustadora realidade externa. Quando o ovo cai e se quebra
e a clara e gema escorrem para fora, é como se o mundo de Ana viesse à tona, à
luz do dia. Como se descobrisse a si mesma. “Não havia como fugir. Os dias que
ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava” (p. 27). De certa
forma, há uma transformação ou um renascimento, ao atingir esse ponto crítico
de ruptura. “O que chamava de crise viera afinal” (p. 23). Ou seja, a vida
real, a verdade crua, entra com veemência em seu ser. “Ela apaziguara tão bem a
vida, cuidara tanto para que esta não explodisse” (p.23). Nesta tarde, não pôde
evitar: explodiu. Sem dúvida, a “descoberta” – através do cego e dos
acontecimentos da tarde – de que o mundo não era perfeito e artificial, mas
repleto de dor e de angústia, lançou-a diante de sua própria existência, ou,
para falar como o filósofo, da condição de ser-no-mundo. Aqui a referência ao
existencialismo não poderia ser mais explicita. Vejamos: “E através da piedade
aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca” (p. 23). Imersa nesta
náusea, Ana perde o ponto e acaba num jardim. Novamente, o jardim representa
uma metáfora: a do mundo que está fora da crosta. Nele habitam seres que não
são familiares e estranhos, como o gato, pardais, aranhas; além disso, frutas
pretas, doce como o mel, mancham o banco, o chão, com uma cor roxa. Há uma
beleza nesse terrível mundo exterior. O mundo fora da crosta é semelhante a uma
noite, liquida e suja, mas saborosa, doce. “A crueza do mundo era tranquila”
(p. 25). Aliás, mundo que era esmagado se ousasse invadir a pureza, o asseio, o
esmero de seu lar, como a insignificante formiga na cozinha limpa. A vida, sem
a segurança dos referenciais cuidadosamente preservados em sua rotina, causa
repulsa, pois se assemelha a insetos e aranhas e tem a consistência gosmenta,
apodrecida. No entanto, é sensível, apetitoso, comestível. “Ao mesmo tempo que imaginário
– era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e
tulipas” (p. 25). A metáfora do gosto é muito presente no conto e pode ser
interpretada como a substância que alimenta e que é deliciosa, apesar de
insuportável. Todavia, este mundo está presente em sua casa, a aranha atrás do
fogão! Assim, Ana cai em si, sabe que é uma privilegiada vivendo na sua pequena
ilha distante do mundo, onde seus filhos
cresciam, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com jornais e sorrindo
de fome. “Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a
náusea subiu à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada” (p. 25).
Esta constatação demonstra o caráter social do conto. Ao quebrar a casca de seu
mundo, Ana tem a chance de se engajar e compreender a vida como ela é. “Ela
amava o mundo, amava o que fora criado – amava com nojo. Do mesmo modo que
sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a
aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a” (p.26).
Ao chegar ao seu apartamento, Ana
abraçou o seu filho como se fosse um porto seguro. Abraçou-o como demasiada
força. Depois recebeu o marido, os seus irmãos e cunhadas para o jantar. “Eles
rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão
dispostos a não ver defeitos” (p. 28). Havia poucos ovos, aqueles que restaram,
mas mesmo assim a comida foi muito boa! De fato, muita coisa ainda foi
preservada. Porém, a sensação de náusea não podia desaparecer. “O que o cego
desencadeara caberia nos seus dias? Quanto anos levaria até envelhecer de
novo?” (p. 29). Outra vez é possível identificar mais uma metáfora, a da
metamorfose do inseto saindo de sua vida larval dentro de um casulo para se
tornar adulto. “E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos
antes que ele nunca mais fosse seu” (p. 28). No conto, há muitas outras
metáforas que poderiam ser exploradas, mas, acreditamos que apreendemos em
linhas gerais alguns de seus aspectos mais significativos.
b) O
espaço tem um sentido importante na narrativa do conto ora examinado. Não chega
a exercer um determinismo incondicional, porém opera um tipo de interlocução
bastante significativa com relação à personagem. É como se houvesse uma troca
intensa entre o ambiente e a protagonista Ana. O cenário do bonde se alterna
com o da casa, e depois a Rua Voluntários da Pátria remete simbolicamente a
revolução interna por que passa a personagem. Entretanto, talvez, o Jardim
Botânico desempenha um momento crucial na trama do conto. Ele é repleto de
simbolismo que parecem refletir a descoberta do próprio mundo interior da
personagem.
c) Já o
tempo, desempenha uma função menor. Aparece como cenário, ou pano de fundo da
narrativa. O fluxo narrativo se desenrola no período de um dia e tudo se passa
à tarde e à noite, num dia de verão.
d)
Identificamos o foco narrativo como onisciente
seletivo. O narrador praticamente não se omite diante dos acontecimentos
apresentados. Algumas de suas intervenções podem ser mesmo interpretadas como
indagações da própria personagem ou mesmo do leitor, como se observa no trecho
a seguir: “Com horror descobria que pertencia que pertencia a parte forte do
mundo – e que nome se deveria dar a misericórdia violenta?” (p. 27).
e) O
conto se desenrola com uma descrição que se encerra de modo dramático, isto é,
com um diálogo entre a personagem Ana e o marido.
CONCLUSÃO
Como já
foi dito, o conto “Amor” apresenta características do estilo da obra de Clarice
Lispector expressas numa linguagem metafórica e entremeada de paradoxos. Assim,
um momento banal da vida cotidiana, como o do cego mascando chicletes, perverte
todo o seu sentido desencadeando revelações insuspeitas e inusitadas. Os
sentidos revelados alcançam uma esfera de questionamentos que podem ir desde problemas
existenciais até mesmo de ordem social e econômica, desvelando, por exemplo, as
diferenças de uma sociedade de classes. É bastante interessante atentar também
para como em um conto de tão poucas páginas pode haver tanta riqueza de
conteúdo simbólico. Este conteúdo simbólico inunda toda a narrativa mas se
destaca principalmente nas relações entre os personagens, no caso Ana, e o
espaço.
Epifania:
Denominando-a
como um ‘instante existencial’, ‘momento privilegiado’, ‘descortino silencioso’
ou simplesmente epifania, eles a traduzem ou a conceituam de forma diversa: uns
como uma revelação interior e duração fugaz; outros como um momento
excepcional, revelador e determinante; ou ainda como um fenômeno, onde no ponto
maior da dualidade entre o ‘eu’ e o ‘outro’, que se dissimula sob diversos
disfarces, ocorre a epifania, como momento necessário e insustentável de tensão
na narrativa.
Não se
pode dizer que os desfechos de seus contos apontam para a resolução dos
conflitos;
os conflitos são interiores, revelados enunciados na narrativa. E o retorno ao
equilíbrio da situação inicial, antes de se deflagrar a revelação ou a
epifania, é praticamente impossível.
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