Siga-se o improvérbio: dá-se o braço e logo querem a mão. Afinal, quem tudo perde, tudo quer. Contarei o episódio evitando juntar o inútil ao desagradável. Veremos, no final sem contas, que o último a melhorar é aquele que ri. Mandaram vir para Maputo a avó Carolina. Razões de guerra. A velha mantinha magras sobrevivências lá, no interior, em terra mais frequentada por balas que por chuva. Além disso, a avó estava bastante cheia de idade. Carolina merecia as penas. A vovó chegou e logo se admirou dos luxos da família. Alcatifas, mármores, carros, uísques, tudo abundava.
Nos princípios, ela muito se orgulhou daquelas riquezas. A Independência, afinal, não tinha sido para o povo viver bem? Mas depois, a velha se foi duvidando. Afinal, de onde vinham tantas vaidades? E por que razão os tesouros desta vida não se distribuem pelos todos? Carolina, calada em si, não desistia de se perguntar.
Parecia demorar-se em estado de domingo. Mas, por dentro, os mistérios lhe davam serviço. Na aldeia, a velha muito elogiara a militância dos filhos citadinos, comentando os seus sacrifícios pela causa do povo. Em sua boca, a família era bandeira hasteada bem no alto, onde nem poeira pode trazer mancha. Mas agora ela se inquietava olhando aquela casa empanturrada de luxos. A filha vinha da loja com sacos cheios, abarrotados.
- Este abastecimento não é tão demais?
- Cala, vovó. Vai lá ver televisão.
Sentavam a avó frente ao aparelho e ela ficava prisioneira das luzes. Apoiada numa velha bengala, adormecia no sofá. E ali lhe deixavam. Mais noite, ela despertava e lusco-fuscava seus pequenos olhos pela sala. Filhos e netos se fechavam numa roda, assistindo vídeo. Quase lhe vinha um sentimento doce, a memória da fogueira arredondando os corações. E lhe subia uma vontade de contar histórias. Mas ninguém lhe escutava. Os miúdos enchiam as orelhas de auscultadores. O genro, de óculos escuros, se despropositava, ressonante. A filha tratava-se com pomadas, em homenagem aos gala-galas (*). A avó regressava à sua ilha, recordando a aldeia. Lá, no incêndio da guerra, tudo se perdera. Ficaram sofrimentos, cinzas, nadas.
- Essas coisas todas, meu genro, de onde vêm?
- São horas extraordinárias.
Devia ser horas muito extraordinárias, avaliava a avó. Cansada de tanta coisa que não podia explicar, ela pediu para regressar. Voltava para o lugar onde pertencia, vizinha da ausência. Então, os filhos lhe ofereceram roupas bonitas, sapatos de muito tacão e até um par de óculos para corrigir as atenções da idosa senhora. Carolina cedeu à tentação. Bonitou-se. Pela primeira vez saiu a ver a cidade.
- Nunca atravesse nenhuma rua. Você não tem idade para pedestrar.
Não chegou a atravessar. Logo no passeio, ela viu os meninos farrapudos, a miséria mendigando. Quantas mãos se lhe estenderiam, acreditando que ela fosse proprietária de fundos bolsos? A avó sentou-se na esquina, tirou os óculos, esfregou os olhos.
Chorava? Ou sentia apenas lágrimas faciais, por causa das indevidas lentes? Regressada a casa, ela despiu as roupas, atirou no chão os enfeites. Da mala de cartão retirou as consagradas capulanas, cobriu o cabelo com o lenço estampado. E juntou-se à sala, inexistindo, entre o parêntesis dos parentes. Nessa noite, a televisão transmitia uma reportagem sobre a guerra. Mostravam-se bandidos armados, suas medonhas ações. De súbito, sem que ninguém pudesse evitar, a velha atirou sua pesada bengala de encontro ao aparelho de televisão. O ecrã se estilhaçou, os vidros tintilaram na alcatifa. Os bandidos se desligaram, ficou um fumo retangular.
- Matei-lhes, satanhocos! – gritou a avó.
Primeiro todos se estupefactaram. Os meninos até choraram, assustados. O genro reabilitou-se aos custos. Soprando raivas, ergueu-se em gesto de ameaça. Mas a avó, apanhando a bengala, avisou o homem:
- Tu cala-te. Não sentes vergonha? Há bandidos a passear aqui na tua sala e tu não fazes nada.
Incrustada em espanto, a família encarava a anciã. Carolina monumentara-se, acrescida de muitos tamanhos. Então, atravessou a sala, vassourou os estragos, meteu os vidrinhos num saco de plástico.
- Estão aqui todos – disse.
E entregou o saco ao genro. Do plástico pingavam gotas de sangue. O genro espreitou as próprias mãos. Não, ele não se tinha cortado. Era sangue da avó, gotas antiquíssimas. Tombaram no tapete, em vermelha acusação. Na manhã seguinte, a avó despachou o seu regresso. Voltou à sua terra, nem dela se soube mais. Na cidade, a família se recompos sem demora. Compraram um novo aparelho de televisão, até que o anterior já nem era compatível. De vez em quando recordavam a avó e todos se riam por unanimidade e aclamação. Festejavam a insanidade da velha. Coitada da avó. No entanto, ainda hoje uma mancha vermelha persiste na alcatifa. Tentaram lavar, desconseguiram. Tentaram tirar os tapetes, impossível. A mancha colara-se ao soalho com tal sofreguidão que só mesmo arrancando o chão. Chamaram o parecer do feiticeiro. O homem consultou o lugar, recolheu sombras. Enfim, se pronunciou. Disse que aquele sangue não terminava, crescia com os tempos, transitando de gota para o rio, de rio para oceano. Aquela mancha não podia, afinal, resultar de pessoa única.
Era sangue da terra, soberano e irrevogável como a própria vida.
RESUMO:
O conto narra a história de Carolina, uma avó idosa que, após ser enviada de sua aldeia para Maputo devido à guerra, vivencia um choque de valores ao se deparar com o luxo e a ostentação da família. Ela, que antes vivia em um ambiente de simplicidade e sofrimento, começa a questionar as riquezas dos filhos e o desperdício que vê ao seu redor. Com o tempo, sente-se cada vez mais deslocada e angustiada, lembrando de sua terra natal destruída pela guerra. A avó, por fim, perde a paciência ao assistir a uma reportagem sobre a violência na guerra e, em um gesto impulsivo, destrói a televisão com sua bengala, jogando uma pesada acusação sobre a sua família. Ao final, uma mancha de sangue da avó permanece na alcatifa, simbolizando a continuidade do sofrimento e da resistência da terra e do povo.
Elementos da narrativa:
Personagens:
- Carolina (Avó): A personagem principal. Uma mulher idosa, de origem simples e rural, que se vê imersa no luxo e na futilidade de seus filhos. Sua resistência e memória da guerra marcam sua personalidade.
- Filhos e netos de Carolina: Representam a modernidade e o distanciamento da realidade do interior, vivendo em uma realidade de consumo e ostentação.
- Genro: Um dos membros da família que demonstra uma atitude desinteressada e autoritária, especialmente com a avó.
Tempo:
- O tempo no conto é contemporâneo, situado após a independência de Moçambique, quando há uma grande disparidade entre a vida na cidade e nas zonas rurais, marcada pelas dificuldades e a guerra.
Espaço:
- O conto se passa em Maputo, a capital de Moçambique, e também faz menção à aldeia de onde Carolina veio, marcada pela pobreza e pelos efeitos da guerra. O contraste entre esses dois espaços reflete o conflito interno da personagem.
Enredo:
- A trama gira em torno da avó Carolina que, ao chegar em Maputo, se depara com a ostentação de seus filhos e começa a questionar os valores da família. Sua angústia cresce até o momento em que ela explode, destruindo a televisão e deixando uma marca de sangue, que representa a resistência de sua história e de sua terra natal.
Clímax:
- O clímax do conto ocorre quando a avó, em um momento de frustração e revolta, destrói a televisão com sua bengala e, ao fazer isso, deixa uma mancha de sangue que simboliza sua resistência e dor acumulada.
Foco narrativo:
- O conto é narrado em terceira pessoa, permitindo ao leitor uma visão mais ampla dos conflitos internos da personagem e da crítica social, ao mesmo tempo que proporciona a imersão nas percepções e sentimentos de Carolina.
Análise do conto:
Mensagem central: O conto aborda a desigualdade social, os contrastes entre as gerações e os valores culturais de um povo. A avó Carolina representa a resistência do passado, enquanto seus filhos simbolizam a busca por status e riqueza, muitas vezes à custa de seus princípios. O sangue que mancha a alcatifa é um símbolo da continuidade das lutas e do sofrimento do povo, que não pode ser apagado nem pela modernização nem pelo consumismo.
Símbolos: O sangue da avó na alcatifa simboliza a luta e o sofrimento da terra e do povo, que não podem ser facilmente esquecidos. A televisão quebrada é um símbolo da ruptura entre os valores tradicionais e os valores materialistas da nova geração.
Características das personagens:
Carolina (Avó):
- Físicas: Idosa, usa bengala, com sinais de cansaço e fragilidade, mas também com uma força interna.
- Psicológicas: A avó é uma personagem introspectiva e reflexiva. Sua psicologia é marcada por um sentimento de desconforto com a nova realidade em que se encontra. Sua revolta, no entanto, cresce conforme ela percebe a distância entre a vida de seus filhos e a vida simples e sofrida da aldeia.
Filhos e netos de Carolina:
- Físicas: Representam a juventude, mas não são descritos com muitos detalhes físicos no conto. São pessoas bem-sucedidas e com aparência de pertencentes à classe alta.
- Psicológicas: Demonstram superficialidade e distanciamento das origens da família. São mais preocupados com o consumo e o status do que com os problemas e os sentimentos da avó.
Tema principal e secundário:
Tema principal: O conflito entre as gerações e as diferenças de valores entre a vida rural e urbana. A avó representa o sofrimento, a luta e os valores tradicionais, enquanto seus filhos estão imersos em um mundo de consumo e ostentação.
Tema secundário: A crítica à desigualdade social e à desconexão entre as elites e o povo que sofre com as consequências da guerra e da pobreza. A mancha de sangue na alcatifa simboliza a imutabilidade do sofrimento do povo e a resistência da memória histórica.
Reflexão sobre o conto "Sangue da Avó Manchando a Alcatifa":
Por que a avó Carolina sente-se deslocada na casa de seus filhos?
- Resposta: A avó se sente deslocada porque os valores de seus filhos e netos estão completamente distantes dos seus. Ela vem de um ambiente simples e marcado pelo sofrimento, enquanto a família de seus filhos vive em um mundo de luxos e ostentação, sem se preocupar com as dificuldades da vida real e a miséria ao seu redor.
Qual é o simbolismo da mancha de sangue que permanece na alcatifa?
- Resposta: A mancha de sangue simboliza a memória das lutas passadas e o sofrimento do povo. Ela representa a resistência da avó e de sua terra, que não podem ser apagadas, mesmo diante da modernização e do consumo excessivo. A mancha também reflete a crítica à indiferença da nova geração em relação à realidade do país.
O que o gesto de destruir a televisão revela sobre a avó Carolina?
- Resposta: O gesto de destruir a televisão revela a frustração e o desespero da avó diante da situação em que se encontra. A televisão, símbolo da alienação e do consumo, representa a desconexão de seus filhos com a realidade do povo, enquanto a avó, ao destruir o aparelho, expressa sua revolta contra a falta de ação diante das injustiças que vê.
O que podemos aprender com a reação da família diante do ato da avó?
- Resposta: A reação da família mostra a desconexão emocional que existe entre as gerações. Eles riem da avó e a consideram insana, sem entender o significado profundo de seu ato. Isso nos ensina sobre a falta de empatia e compreensão entre diferentes gerações, especialmente em um contexto de mudanças sociais e econômicas rápidas. A atitude da avó, embora impulsiva, é uma forma de resistência e alerta sobre as consequências de ignorar o sofrimento do outro.
Essas perguntas e respostas ajudam a refletir sobre os temas centrais do conto e os conflitos entre as gerações, além de oferecer uma análise crítica sobre a relação entre o passado e o presente, e sobre as consequências da indiferença.
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